CRÔNICA

A MARMITA

 

Minha relação com a marmita é totalmente terna, cheia de gratidão misturada com ressentimento. Conto a meus filhos para saberem desse quadro da vida do pobre, do viajante, do trabalhador brasileiro. Marmita, amor e ódio. Eu a conheci aos dez, quando mamãe me mandava levá-la para minha irmã. Para mim era uma missão incrível. As onze pegava o ônibus sem pensar em nada além das recomendações. Sentava-me e sentia aquele quentinho nas mãos. Depois que entregava a meu irmão seu almoço, ia para casa feliz pensando em voltar no dia seguinte. Até hoje acho esse mimo de minha mãe um luxo, talvez inveja pelo que eu jamais tive.

Minha mãe me contava histórias. Um dia ela foi levar a matula de meu pai que lenhava na floresta. Uma Urutu Cruzeiro a atacou no caminho, minha mãe correu, mas a danada da cobra saltava. Desesperada gritava por meu avô. Só se livrou da bicha quando jogou a vasilha no chão. A urutu saltava em cima, sei lá, talvez tentasse abrir para comer. Minha escapou.

Fui crescendo, mas nossas condições financeiras encolhendo. Tornei-me arrimo de família aos quinze. E foi nessa época que minha aventura matulesca começou. Tive muitas delas, de plástico e de lata, de todas as formas, redondas e quadradas. De início o preparo de meu almoço era pela manhã. Estranhava sentir o cheiro de temperos logo cedo. Minha mãe, sempre mãe, me zelava rumo a meu destino de homem. Aquela cena me enternecia. Mamãe me perguntava se eu queria tais e tais coisas na “quentinha”. Eu sempre concordava com tudo e mal sabia não tinha opções. Eu era um bom garoto, não reclamava de comer ovo vários dias. Sentia o calor da marmita e também da Carmelita, que despedia com um beijo.

Preciso falar do ovo, que frito, depois esfria. Nunca fui de reclamar, mas era uma experiência estranha. Procurava comer as onze, para ainda a tempo de pegar morninha. Mas o ovo, esse disco emborrachada, me fazia pensar em mamãe de modo diferente. Ela passou a mandar cozido.

Quando mamãe adoeceu eu fiz a minha própria marmita. Quase morri de desgosto. O bife parecia a real sola da minha bota, tinha que puxar com as duas mãos. As tentativas era diversas e uma mais criativa que a outra. Embrulhar em jornais, levar garrafa térmica com água quente para mornar, fazer apetrechos com latas e álcool para esquentar (quase taquei fogo em tudo). Era divertido pensar nas posições da comida. Mas o feijão sempre ficava seco e duro junto com o “sorvete” de arroz, a gordura um sebo e o tomate quase sempre azedava. Era uma aventura desenvolver uma técnica melhor.

Um dia estava no ônibus estrando a mais nova tecnologia: a marmita com isopor. Tinha um zíper e uma alça prática. Tinha feito o teste e realmente funcionava. Não sei como, numa curva brusca, segurei na parte alta com o polegar sustentando a “quentinha”. Meu! O zíper abriu e voou comida em todo mundo. Nunca fui tão amado!

Algumas vezes abri a marmita e disse: De novo não! Mas comer ovo, não era problema. Estava só cansado de comer um algum canto de uma das obras. Quem come de marmita nem sempre pode comer tranquilo. O marmiteiro precisa desenvolver uma arte de inventar a agradabilidade local. No meu caso já estava naquele estágio de fazer à noite e levar gelada no dia seguinte e esquentar em algum lugar, quando dava. Não poucas as vezes voltei com a vasilha intocada. Mamãe perguntava se eu havia comido fora. Algumas vezes cheguei a esquentar em casa para janta. Tempo triste, esse.

Mas o que dizer do companheirismo? Quando amigos descobriam que sua marmita estava azeda, a gente repartia. A humanidade é linda! Às vezes também partilhávamos especialidades das mães.

Depois eu aprendi a fazer comida e a preparar suculentos pratos que se encaixavam mais na cultura marmitóloga.

Bem, depois que me casei, as coisas mudaram. Fui trabalhar num lugar que tinha refeitório. Só não servia comida. Mas já tinha uma mesa e lugar para minha fiel companheira folgar em banho maria. Dava todas as instruções para minha mulher, mas não tinha mais como, eu acabava fazendo. E continuei assim até que a vida melhorou.

Abri uma empresa de marmitex. Você pode imaginar? A quentinha jamais me deixou. Eu e ela, inseparáveis. Tornei-me especializado em entregas com a garantia do slogan “sempre quentinhas”. O nome da empresa era “Marmimãe”.

Saio com meus filhos duas vezes por semana para entregar marmitas para pessoas necessitadas. Eles experimentam o retorno da gratidão das pessoas e isso educa, acredito. Minha mulher nunca comera sequer uma marmita em sua vida, nem meus filhos. Um dia os levei para comer fora e o garçom trouxe seis marmitas dessas antigas de alumínio retangulares, conforme eu havia combinado sem que soubessem. Se entreolhavam. Elas estavam mornas, quase frias com aquele “zoião” de ovo olhando feio para eles. Riram, mas perceberam algo estranho em mim. Dei a meus filhos a sensibilidade. A pequenina Júlia abriu a dela e pegou o ovo com a mão. O outro de sete pediu catchup e enfiou a colher. Os mais velhos demoraram, mas, foram me enganando. Minha esposa, refinada sempre, usou garfo e faca. Comemos em silêncio, reverentemente. Eu soltei uma lágrima.

Queria que eles soubessem.

4 comentários sobre “CRÔNICA

  1. parabéns pela criatividade, realmente tudo depende do ponto de vista, ou da necessidade. depende do que se tem pra colocar dentro da marmita, pra ela ser ótima ou ruim.

  2. A vida é uma ótima escola e como reagimos a seus ensinamentos fazem diferença na perspectiva da nossa vida, onde estamos hoje e até onde podemos chegar. O sofrimento em particular nos molda a sermos pessoas melhores do que as bonanças da vida.

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